No episódio mais recente do De-Gov Studio, Primavera De Filippi, Michel Bauwens, Weaver Weinbaum e Marta Lenartowicz discutiram as nuances da governança policêntrica e o potencial desse modelo para revolucionar as estruturas organizacionais em ecossistemas de blockchain. A conversa, rica em conceitos e insights práticos, lança luz sobre a viabilidade e os desafios de substituir a centralização e a descentralização pura por um modelo de múltiplos centros de poder.
Descentralização e Policentricidade: Limitações e Soluções
Dra. Primavera De Filippi, pesquisadora associada do CNRS em Paris e do Berkman Klein Center em Harvard, abriu a discussão com uma crítica à descentralização pura, apontando suas limitações práticas. Ela destaca que, embora a descentralização prometa autonomia aos agentes, ela carece de mecanismos que assegurem a cooperação eficaz entre eles. Essa lacuna torna a descentralização, em alguns casos, insuficiente para organizar e coordenar sistemas complexos de forma sustentável.
A solução para essa fragilidade, segundo De Filippi, pode estar na governança policêntrica – um modelo que toma emprestado o conceito de “múltiplos centros de tomada de decisão” de Elinor Ostrom, famosa por seu estudo sobre a gestão coletiva de recursos comuns. Em um sistema policêntrico, não existe um centro único que dite todas as diretrizes; em vez disso, há diversos núcleos autônomos de poder que compartilham a responsabilidade e a autoridade sobre um domínio comum. Isso permite uma cooperação mais orgânica e flexível, onde os participantes mantêm a autonomia, mas operam em um ambiente de interdependência.
Distribuição Técnica e Autonomia Política
Michel Bauwens, fundador da P2P Foundation, trouxe ao debate a importante distinção entre descentralização e distribuição. Em seu ponto de vista, a descentralização é um fenômeno político, onde se busca distribuir o poder decisório; já a distribuição é uma questão técnica, tratando da dispersão física dos dados ou dos recursos. No entanto, Bauwens argumenta que a distribuição, quando implementada sem uma estrutura de governança, não necessariamente promove autonomia política, podendo até criar novas formas de centralização na dependência de infraestrutura ou recursos.
Weaver Weinbaum, cofundador da NuNet, complementou a visão de Bauwens ao enfatizar que a governança policêntrica representa um meio-termo onde diversos centros de decisão podem operar em paralelo, mantendo independência relativa, mas com laços de colaboração. Para Weinbaum, a policentricidade oferece um espaço fértil para experimentação em governança, particularmente na Web3, onde as interações entre agentes independentes e interdependentes são fundamentais para o funcionamento das redes.
A Dinamicidade dos Sistemas Policêntricos
De Filippi argumenta que a dinamicidade dos sistemas policêntricos é um dos fatores que os torna tão relevantes para a governança moderna. A estrutura policêntrica evita que o poder seja consolidado em um único ponto e, ao mesmo tempo, permite uma adaptação constante às necessidades do sistema. Em contraste com sistemas centralizados, onde uma mudança drástica no centro pode causar instabilidade, os sistemas policêntricos mantêm uma "metaestabilidade" – um equilíbrio fluido em que os diversos centros de poder precisam negociar constantemente uns com os outros.
Essa adaptabilidade também faz com que os sistemas policêntricos sejam particularmente adequados para contextos onde é necessário responder a mudanças rápidas e inesperadas. Em blockchain, por exemplo, a dinamicidade é uma característica desejável, já que os sistemas de governança precisam acompanhar as inovações tecnológicas e as demandas da comunidade, sem depender de um único centro de comando.
A Web3 e o Dilema da Governança Descentralizada
A conversa avançou para uma análise crítica da Web3, frequentemente descrita como o epítome da descentralização. De Filippi observou que, embora a Web3 represente um movimento em direção à descentralização, muitas de suas dinâmicas são, na verdade, policêntricas. Isso se deve à presença de diversos atores – desenvolvedores, usuários, reguladores e investidores – que detêm poder sobre o ecossistema. Para ela, a Web3 poderia beneficiar-se enormemente de uma governança policêntrica bem definida, onde os interesses de diferentes grupos são alinhados de maneira flexível e colaborativa, ao invés de rigidamente distribuídos.
Michel Bauwens acrescentou que a Web3 está longe de ser uma entidade puramente descentralizada, considerando que ela ainda depende, em muitos casos, de infraestrutura física e financeira controlada por grandes empresas. Em seu ponto de vista, o desafio não é apenas distribuir o poder, mas também garantir que essa distribuição seja dinâmica e capaz de responder às interações entre os diferentes centros de influência. Para Bauwens, a Web3 só será verdadeiramente descentralizada quando puder incorporar, de forma natural, as tensões e cooperações inerentes ao policentrismo.
Conclusões: O Futuro da Governança Policêntrica
Os especialistas concordaram que os sistemas de governança do futuro precisarão transcender as definições rígidas de centralização e descentralização. O modelo policêntrico surge como uma solução prática para os desafios de coordenação em sistemas complexos e interconectados. De Filippi conclui que a governança policêntrica oferece a possibilidade de uma estrutura de governança que permite tanto a autonomia quanto a cooperação. O segredo está na tensão contínua e produtiva entre os diferentes centros de decisão, que assegura a adaptabilidade e a resiliência do sistema.
Considerações Finais: Um Novo Paradigma para a Governança Digital
Este episódio do De-Gov Studio deixou claro que a governança policêntrica não é apenas uma teoria acadêmica, mas uma abordagem prática e necessária para o mundo digital. Em um ambiente onde a cooperação e a autonomia são igualmente valorizadas, a governança policêntrica permite que sistemas organizacionais complexos, como a Web3, prosperem sem depender de um único centro de comando.
O que De Filippi, Bauwens e Weinbaum sugerem é que a governança policêntrica pode ser a chave para equilibrar liberdade individual e responsabilidade coletiva, oferecendo um caminho viável para a governança em rede. Em um mundo onde a colaboração é crucial e a competição entre ideologias e estruturas é constante, a governança policêntrica representa um futuro onde a descentralização e a interdependência podem finalmente coexistir, criando sistemas mais justos e resilientes.